Crônica – Perú

21/06/2013 15:39

ERAM OS INCAS ASTRONAUTAS?

As famílias e a atividade agrícola se espalhavam pelos vales, já as sólidas construções militares, religiosas ou administrativas eram erigidas nos picos, mais perto das estrelas. Aliás, este gosto pela altitude, somado ao domínio da astronomia e às avançadas técnicas de agricultura e engenharia, fizeram da cultura inca uma das mais fascinantes da Terra, a ponto de inspirar teorias alienígenas, entre outras fantasias, que já renderam inúmeros “documentários” televisivos e livros bestsellers.

 

No entanto, dentre as afirmações que ouvi sobre a cultura andina, a que mais me marcou foi a de uma jovem guia, que explicava os princípios arquitetônicos de Machupicchu.

– Das grossas paredes antissísmicas, 70% ficavam debaixo da terra, sustentando os 30% visíveis. As obras incas tinham de ser assim, concluiu: firmes e eternas.
Que bonito, pensei! Também não era assim nosso trabalho? Nossas “construções acadêmicas”, nossas obras diárias nos campos do ensino, da pesquisa e da extensão, também não eram elas, em sua maior parte, invisíveis aos olhos? E assim como as paredes incas, não seriam tais obras tanto mais duradouras quanto mais profundos e robustos fossem seus fundamentos? Ora, não há tecnologia sem ciência, assim como não há ciência sem cultura e nem cultura sem educação. Cabe, pois, a esta última, estabelecer a conexão entre as profundezas dos valores populares e ancestrais e os mais altos cumes do conhecimento contemporâneo. Assim pensamos. E, por assim pensarmos, nos demos como missão promover a educação científica, a solidariedade internacional e a aproximação acadêmica entre a UFSC e instituições de ensino latino-americanas.
Nesse intuito viajamos ao Perú, eu e o professor Paulo Berton, Secretário de Cultura da UFSC. Lá, além de visitarmos escolas, universidades e sítios arqueológicos; além de nos reunimos com comunidades indígenas, grupos artísticos e lideranças locais, firmamos um convênio com a Universidad Andina del Cusco (UAC). Através dele, a UAC abriu suas portas para que estudantes catarinenses possam estudar por até um ano na fantástica cidade de Cusco, a 3.600 metros de altitude, às margens do Vale Sagrado dos Incas. Em contrapartida, a UFSC contribuirá para a formação de futuros mestres e doutores peruanos.

Nesta curta passagem pela região, saltaram-me aos olhos dois aspectos de sua cultura. Primeiro, a forte identificação com a ancestralidade inca, que se expressa claramente mesmo nos meios urbanos. A cultura indígena é viva e presente em todas as partes. Não como folclore. Não como algo a ser preservado ou protegido, mas como uma forma natural e inabalável de ser peruano e, mais do que isso, cusquenho. Um orgulho sem arrogância. A língua quechua, as roupas tradicionais com suas cores quase fluorescentes, os homens em orelhudos gorros de lã e as mulheres com chapéus de copa alta e longas tranças negras atadas nas pontas. Tudo ali, simplesmente, fundido aos hábitos hispânicos e aos rituais cristãos.

O segundo aspecto, que já me chamara atenção em minha visita ao estado de Veracruz, no México, se refere a algo que estes povos mantiveram e que nós, por alguma razão, perdemos – ao menos cá no sul. Nós que, ao longo das últimas décadas, trocamos os espaços públicos pelos privados; que por medo ou comodismo (ou apenas modismo), abandonamos nossas ruas e praças e elegemos outras praças, as de alimentação, como centros de lazer e convívio. Diferentemente de nós, os povos andinos ainda lotam as tradicionais praças com suas famílias, em meio a comidas, bebidas e bugigangas coloridas. Casais ainda namoram nas calçadas, senhoras passeiam de braços dados e gerações distintas dividem um mesmo espaço como se fosse numa grande aldeia. Algumas destas cenas me fizeram lembrar do passado. Outras, só havia visto em filmes, como naquelas cenas onde franceses dançavam ao ar livre comemorando o fim de uma guerra. Pois os novos incas, diferentemente de nós e dos novos franceses, ainda dançam e cozinham pelas ruas e se embriagam comunitariamente e em família.

Comprovei estes dois aspectos quando passei casualmente pelo centro de Cusco na véspera do Corpus Christi. Uma celebração impressionante, comparável ao nosso carnaval. Imagens de santos e virgens saem de suas paróquias sobre pesados andores, carregados nos ombros por uma dúzia de bem dispostos devotos, e seguem pelas ruas, acompanhadas por bandeiras, bandas e fiéis em trajes de gala. Aprendi que tal evento foi uma adaptação dos colonizadores espanhóis. Ora, para terminar com uma inconveniente festa pagã onde os nativos carregavam, nesta mesma época e nesta mesma praça, restos mortais ricamente adornados de seus reis e antepassados, os missionários tiveram uma ideia providencial: substituir as múmias incas por santos cristãos e deixar seguir a festa.
Os desfiles encerram na grande catedral, onde os santos repousarão até a manhã seguinte, quando então sairão para o desfile final e apoteótico. Enquanto isso, braseiros são acesos nas ruas, o perfume dos assados se espalha pelo ar e casais se atam e desatam em um baile, mais do que popular, sagrado.

André de Ávila Ramos, em 19 de junho de 2013.

Secretário-Adjunto de Relações Internacionais da UFSC

Crônica – Bolívia

04/06/2013 14:06

AS VEIAS ABERTAS DE UMA AMÉRICA QUE NÃO É A MINHA 

No momento que digito este texto, percorro um caminho que vai da cidade de Santa Cruz de La Sierra até Sucre, ambas na Bolívia. Faço esse trajeto em um ônibus de manutenção no mínimo duvidosa, que levará aproximadamente 16 horas para percorrer um trajeto de pouco mais de 600 km. Isso porque a estrada é bastante sinuosa e pouco conservada (para não dizer precária), o que faz com que esta etapa da viagem ganhe uma pequena pitada de emoção.

As várias cruzes colocadas ao longo do trajeto dão requintes de terror ao enredo da viagem. A parada emergencial feita alguns quilômetros atrás para um suposto conserto da barra de direção é apenas mais um preocupante ingrediente deste enredo. Mas, como otimista que sou, prefiro confiar nas palavras do motorista (e também mecânico nas horas vagas) quando ele diz que “No hay grandes problemas”. Resta-me apenas saber o que seria um “grande problema” para aquele que parece já estar acostumado com esse tipo de situação. É que até isso, ou seja, os problemas, parecem ser apenas mais um destes conceitos ditos como “relativos” neste mundo que começo a desbravar. Bom, mas neste momento, não há nada a fazer a não ser torcer para que o ônibus no qual eu viajo não venha a se tornar mais uma cruz nessa triste estatística de cruzes à beira da estrada.

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