Crônica – Angola

02/05/2013 14:54

MISSÃO ANGOLA 

Alguns aspectos de uma missão internacional são previsíveis. No caso, a vasta agenda, fruto de um complicado planejamento bilateral que se estendera por meses. Compromissos diversos com um objetivo comum: abrir novas vias de cooperação entre a UFSC e Angola. Na capital Luanda, visitas à Universidade, reuniões na Reitoria, em Ministérios, Embaixadas, visando preparar o terreno para novos projetos de cooperação com este surpreendente país africano. Há, no entanto, em toda missão, algo que só se descobre ao chegar. Em Angola, um forte componente cultural, emocional e humano, que extrapola agendas e relatórios técnicos. É isso que conto aqui.

PARTE I : Um país em construção

Visita da missão UFSC ao novo Campus da UAN em 6 de fevereiro de 2013

Surpreendente. Este é o adjetivo que eu escolheria para descrever minha primeira impressão de Luanda. Não falo do intenso calor nem do burburinho metropolitano das ruas, afinal, era fevereiro e estávamos no coração de uma das maiores cidades da África. Falo do resto. E de resto, tudo me surpreendia. No princípio, foi um pouco embaraçoso admitir o tamanho de minha ignorância sobre a realidade daquele país, irmão nosso de pai e de mãe. No entanto, uma vez assumida a ignorância e abandonadas as ideias preconcebidas, eu estava livre para, honestamente, me deixar impressionar pelo efervescente desenvolvimento angolano. Depois de quarenta e um anos de guerras, seguidos de uma década de paz, enfim a (re)construção. Um país em obras. Prédios modernos, estradas (de asfalto ou de ferro), escolas, casas, bairros. Cidades inteiras, construídas da noite para o dia, algumas ainda vazias de gente. E onde havia gente, via-se um povo altivo, belas mulheres vestidas com elegância e originalidade, um mar de carros de luxo, um oceano de diversidade. Tudo isso entremeado com a mais legítima (e, em nosso caso, familiar) pobreza. Alguns hotéis decadentes, calçadas mal calçadas, visíveis problemas estruturais. Enfim, nestes aspectos, nada muito diferente do que vemos por aqui, nas nossas “Luandas”, tirante o ritmo alucinante do crescimento e a exótica presença das companhias chinesas de construção civil.

Universidade Agostinho Neto, Luanda

Na capital, foram vinte e quatro horas de uma agenda abarrotada, quase impossível, sobretudo se levássemos em conta as longas distâncias a serem percorridas e o infernal trânsito luandense, que me fez sentir saudades das “bucólicas” filas do nosso sul da ilha em dia de jogo na Ressacada. Mas encaramos tudo com bom humor, como tinha de ser, eu e meus três colegas professores, em missão oficial pela UFSC. A rápida passagem pelo museu de antropologia, a visita ao novíssimo campus da Universidade Agostinho Neto (UAN), a reunião com o primeiro escalão da sua Reitoria, a recepção na Embaixada brasileira, tudo se passou de forma rápida e concentrada, como o trailer de um bom filme de ação.

Luanda

Enquanto apresentávamos nossos projetos para esta nova fase de relação entre UFSC e Angola, eu lembrei aos nossos anfitriões que a história de cooperação acadêmica entre Santa Catarina e seu país era mais antiga do que se poderia supor. Contei-lhes que um dos primeiros e mais renomados geólogos brasileiros, o Sr Acyr Ávila da Luz, figura emblemática da PETROBRÁS, que lecionou na UAN e atuou na prospecção de petróleo em Angola durante boa parte da década de 1980, é catarinense, nascido aqui na vizinha Palhoça, há noventa e dois anos atrás. Ficaram contentes em saber das boas referências dadas pelo Seu Acyr quando de minha visita a sua casa, aqui na ilha, dias antes do início de nossa viagem. Informaram-me que alguns de seus antigos colegas de departamento ainda estavam na ativa na Faculdade de Ciências da UAN.

Embaixada do Brasil

O primeiro dia foi então assim, quente e longo. Mas a noite seria curta. Muito curta. Enquanto nos despedíamos de nossos colegas de missão, os professores Rubens Nodari e Juarez Nascimento, que continuariam em Luanda em novos compromissos políticos e acadêmicos, eu e a professora Ilka Leite, antropóloga da UFSC, partiríamos ainda na madrugada para a nossa mais aguardada aventura: o encontro com os pastores do deserto do Namibe.

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PARTE II: As portas do deserto

Serra da Leba

“Na imensidão de seda sento, tonto de tanta luz e de tão pouco vento.” Começava assim um poema que escrevi há anos atrás, não para este, mas para um outro deserto, mais ao norte. Já este, em Angola, não me parecia de seda e sim de juta. Uma textura mais áspera, uma secura menos seca e o deserto, em si, mais variado em cores e anguloso em formas. Depois de uma descida vertiginosa pela serra da Leba, uma espécie de Rio do Rastro africana, estávamos quase lá. Tinham sido mil quilômetros de avião de Luanda rumo ao sul, em direção à Namíbia. Depois disso, já de caminhonete, a passagem por Lubango, capital da Província de Huíla, foi rápida e quente. Um sol de altitude que esquentava a roupa em questão de segundos nos obrigou a entrar na primeira farmácia para comprar, por cinquenta dólares, um frasco de protetor solar. Sim, é claro, tínhamos levado um na mochila, mas este ficara retido no aeroporto de Luanda, ainda na madrugada.

Professores e diretores da rede municipal de ensino de Tombwa

De Lubango ao Namibe, foram mais duzentos e vinte quilômetros de intensa metamorfose. De mata a savana, de savana a estepe, de estepe a deserto. Mas mesmo lá, nestas regiões remotas, se via a marca do desenvolvimento: de tempos em tempos, modernas estações ferroviárias de construção chinesa, o que se percebia por sua arquitetura. A viagem foi recheada de perguntas ávidas e respostas pacientes. Eu e Ilka perguntávamos, Samuel e Teresa Aço, no banco da frente, respondiam. O improvável casal de antropólogos. Ele, professor da UAN e ela, uma espécie de madrinha dos pastores do deserto. Uma daquelas mulheres de quem normalmente só se ouve falar, que trocou a cidade pelo deserto e os interesses próprios pelos alheios.

No caminho, fomos informados que, antes de entrarmos no deserto, passaríamos noventa quilômetros adiante da cidade do Namibe, indo mais ao sul, até a cidadezinha de Tômbwa, para lá cumprimentar o prefeito. A razão era estratégica e política. A administração municipal vinha ajudando muito o Centro de Estudos do Deserto (CE.DO), organização fundada por Samuel e Teresa Aço no meio de um pequeno povoado conhecido como Njambasana, que servia de base para as ações sociais e científicas do CE.DO junto às comunidades da região. A ideia da visita ao prefeito nos pareceu simpática, não fosse o fato de ela estar marcada para as 15 h e que, duas horas depois disso, ainda não tínhamos sequer chegado ao Namibe. Mas isso não parecia afetar de modo particular o humor de nossos amigos angolanos. Aos insistentes telefonemas no celular, respondiam apenas vagamente que estávamos a caminho.

Prefeito de Tombwa

Anoitecia. Quem sabe já foram embora? Afinal, às seis encerrava o expediente. Vamos dar uma passada na prefeitura ver se ainda tem alguém… Depois de duas noites quase em claro, desde minha saída de Florianópolis, tudo o que meu corpo pedia era uma posição horizontal e um pouco de água fresca para passar na testa.

Ao chegarmos à sede municipal, fomos surpreendidos por um grande número de carros estacionados. Eu e Ilka não entendíamos nada. Ao entrarmos no pequeno prédio térreo, finalmente vislumbramos, por uma porta entreaberta, um grupo de cerca de cinquenta pessoas, mulheres e homens, todos muito bem arrumados. Levantaram-se à nossa entrada em sinal de boas vindas. Eram os professores e diretores da rede municipal de ensino, que aguardavam na tarde quente, havia mais de três horas, por nossa chegada. Emocionados, perplexos, com caras e roupas amarrotadas, nos sentamos na primeira fila, para ouvir o discurso do prefeito e, em seguida, fazermos os nossos. Foi um dos momentos altos da viagem. Falamos das oportunidades de estudos na UFSC, do projeto de pesquisa coordenado pela Ilka, que estudará a cultura e o ambiente dos povos da região, além de um novo projeto de inclusão científica, que também pretendemos desenvolver naquela área.

Samuel e Teresa Aço

Feitas as honrarias e apertadas as mãos, saímos de lá com a certeza de que muito podemos fazer por aquela gente, que, por nós, também poderá fazer bastante. Era noite fechada e estávamos exaustos. Saímos do asfalto num caminho quase imaginário à nossa direita e assim fizemos, em tom silente e solene, nosso ingresso no deserto mais antigo do mundo.

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PARTE III: A invasão do sambo abandonado

Njambassana

Só percebi claramente onde estávamos pela manhã, depois de uma noite fresca e restauradora. Ao sair na pequena varanda da casa de Teresa, ofuscado pela claridade, vi Njambasana. Uma dúzia de casas de pau-a-pique, outras tantas de “material”, tudo à beira de uma grande lagoa quase seca, onde pastavam algumas cabras. Por causa delas, as cabras, viam-se aqui e lá estruturas de tijolos rudimentares, que lembravam nossas churrasqueiras de parque. Nestas espécies de gaiolas, longe das bocas caprinas, eram plantadas as árvores que poderiam um dia produzir sombra. À direita da casa, uma venda ao ar livre, que consistia de uma mesa plástica coberta com toalha branca, sobre a qual repousavam uma dúzia de sacos de farinha, três litros de óleo de cozinha e alguns pacotes menores de algo que não pude identificar. Em torno, alguns meninos brincavam com umas carretinhas de madeira.

De Njambassana a Mbwhú

O programa do dia não podia ser mais excitante. Segundo Teresa, iríamos não somente ver os pastores transumantes, que se deslocam pelo deserto com seus rebanhos em busca de água e pasto, mas também confraternizar com eles. Os pastores, liderados pelo soba Beiapé, amigo de nossos amigos, se reuniriam numa localidade a setenta quilômetros dali, rumo à fronteira entre Angola e Namíbia. Lá eles teriam, assim como nós, uma experiência única. Uma espécie de festa transcultural, onde todos se reuniriam para comer, beber, ouvir música e dançar.

Encontro com pastores

Partimos devidamente equipados com chapéus, protetor solar, água e alguma frutas. Subi na caminhonete me sentindo como há muito tempo não me sentia. Poucos quilômetros adiante a paisagem começou a mudar, mostrando belas estruturas de areia, que lembravam rochas, esculpidas pelo vento. Logo após, a estrada, que já não era propriamente uma estrada, virou apenas deserto. Estávamos assim, já cedo, ligeiramente perdidos. Não encontrando à nossa frente nenhum resquício de estrada, demos meia volta e tomamos outro caminho para chegar a Umbú. Foram setenta quilômetros de paisagem em constante mudança. Áreas totalmente desérticas alternando com outras que apresentavam algumas plantas rasteiras ou arbustivas, resistindo à seca que já durava um ano.

Encontro com pastores

Quando chegamos a Umbú, percebi que se tratava simplesmente de uma região, marcada por colinas de pedras e uma fenda de rocha no solo que, nas raras chuvas, ficava cheia d’água. Perto dela, o CE.DO havia recém construído uma pequena vivenda, que se destacava na paisagem por sua cor ocre e que serviria de posto de venda de mantimentos às populações locais, o único em uma vasta área. Lá se encontravam já muitos membros da “família” de Beiapé. Descer da caminhonete, aproximar-me timidamente dos dois grupos, de mulheres e de homens, vestidos em seus trajes coloridos e ancestrais, ser apresentado ao soba, sorrir e receber sorrisos, tudo parecia real demais e surreal ao mesmo tempo. Ao longe, panelas sobre um fogo de chão já soltavam seu vapor, panos coloridos secavam sobre arbustos e crianças brincavam em paz.

Vista de dentro do Sambo

Enquanto se esperava o almoço e a chegada dos demais convidados, fomos conhecer Pediva. Para isso, nos aprofundamos mais trinta quilômetros no deserto rumo à fronteira da Namíbia. Lá, visitamos a única lagoa onde as pessoas poderiam, em tese, matar sua sede e se refrescar, não fossem suas águas ironicamente termais e salgadas. Enquanto meus companheiros apreciavam a bela lagoa, eu me distanciei um pouco. Perambulando sozinho, me deparei com um sambo aparentemente abandonado. Sambos são acampamentos onde os grupos locais habitam temporariamente. São normalmente circundados por pedras e contam com algumas cabanas cônicas (cubatas) de paus, palha e barro. Movido pela curiosidade, entrei numa delas. Quando lá dentro, me sentindo o próprio guerreiro africano, ouvi vozes. Seriam os proprietários? Não querendo esperar para descobrir, me esgueirei pela pequena abertura e corri ridiculamente de quatro em direção a um arbusto vizinho para, de lá, à sombra e num espaço mais “público”, me sentir menos vulnerável. Eram dois homens seguidos a certa distância por quatro mulheres e suas crianças. Passaram a uns trinta metros de mim sem me ver, o que fez diminuir meu nervosismo mas aumentar meu constrangimento, pois, de um segundo a outro, eu passara involuntariamente da condição de invasor para a de voyeur. Assim como foram, minutos depois voltaram, em fila, pelo mesmo caminho. Fui procurar meu grupo para contar minha aventura, quando descobri que aquelas pessoas tinham vindo ali pedir socorro.

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PARTE IV: A devolução dos cincerros

Pedido de Socorro

Os pastores que eu observara à distância, sob a proteção de um providencial arbusto, haviam seguido nossa trilha no deserto no intuito de pedir ajuda. Foram à procura de Samuel Aço pedir auxílio para uma mãe cuja filha bebê acabara de sofrer um acidente. Pelo que entendemos, uma moto havia caído sobre ela. Pedido de socorro no deserto, aprendi nesta e numa outra ocasião que viria a ocorrer horas mais tarde, não se pondera, se atende. Voltamos assim a Umbú, levando mãe e filha, a quem demos água, uma maçã e, passada a timidez inicial, algum carinho. Felizmente, ao que parecia, tinha sido só um susto, pois a criança parecia bem.

Festa em Mbwhú

Retornando ao local dos festejos, vimos que o número de convidados aumentara bastante durante nossa ausência. Eram agora cerca de cinquenta, a maioria em belos trajes coloridos e portando ornamentos diversos. A música era animada. As pessoas, que tomavam um refresco de leite fermentado ou uma aguardente de banana, estavam descontraídas, porém curiosas com nossa presença. Aos poucos fomos também descontraindo, circulando entre elas, puxando conversa. Todos falavam a língua Cuvale, mas só alguns o português.

Na hora do almoço, sentamos à mesa para aguardar a panela fumegante de miúdos de cabrito ensopados em um grosso molho de sangue. Como acompanhamento, pirão de fubá branco. Comemos e conversamos até a hora dos presentes. Segundo o costume local, pega mal para um visitante chegar de mãos vazias. Isso inclui o fornecimento, por parte de quem chega, de alimentos e bebidas, o que, cá entre nós, faz todo o sentido em um festejo no meio do deserto.

Festa em Mbwhú

Não sem certa cerimônia, chamamos o soba Beiapé. Ilka tinha consigo um presente muito especial. A dissertação de Milena Argenta, sua aluna de mestrado, que passou três meses estudando e convivendo com os povos daquela região. Tínhamos ali o fechamento de um belo ciclo: da comunidade à UFSC e da UFSC de volta à comunidade. Chegou então minha vez. No mês anterior, ainda de férias em Lages, minha terra natal, lembrei de comprar dois cincerros de bronze, um maior, outro menor. Seriam bons presentes para um povo que pastoreia vacas e cabras, pensei. Cincerros são aqueles sinos que se dependuram nos pescoços das reses madrinhas, para que seu badalo guie o rebanho e ainda sirva de sinal para o seu dono. Sabendo que aqueles pastores têm em seus ancestrais a fonte de sua força espiritual, comecei mais ou menos assim: Venho de uma terra de pastores. Lá, usamos estes sinos, que chamamos cincerros. Beiapé respondeu, em bom português, que sabia do que se tratava, mas nunca tinha tido um. Meus ancestrais, continuei, viviam numa região de muito pasto e água, por onde passavam tropas de bois e de mulas. Para descansar, os viajantes paravam naqueles campos onde largavam seus rebanhos para pastar. Beiapé me olhava atentamente, começando a gostar da estória. Acontece que à noite, nossos moradores iam até onde o gado descansava e roubavam o cincerro da vaca madrinha. Uma brincadeira, expliquei eu. Ele balançou a cabeça, sorrindo em tom de aprovação. E foi assim que meus antepassados ficaram conhecidos como “ladrões de cincerro”. Então, para compensar, se é que alguém poderia chamar isso de compensação, estava eu ali oferecendo aqueles objetos, pelo significado que tinham para o meu povo e pela utilidade que poderiam vir a ter ao dele. Beiapé agradeceu e pediu a uma de suas esposas para que guardasse o presente junto a seus pertences.

Soba Beiapé

Saí da casinha ocre emocionado e fui ter meus últimos dedos de prosa com a gente do deserto. Sabia que uma das maiores aventuras de minha vida estava chegando ao fim. Mostrei fotografias, cheirei rapé (tirado de um canudinho de osso e passado a mim pelas mãos de uma anciã), expliquei a um pequeno grupo por que cargas d’água os brasileiros falam português, até que o dia acabou. Ao por do sol, partimos, levando conosco a mãe de Pediva e uma das esposas de Beiapé, cada qual com seu bebê. Já noite escura, ainda acudimos dois rapazes à beira da estrada, que velavam uma moto em pane.

Pôr do sol em Mbwhú

No balanço soporífero do carro, eu saboreava em silêncio a mais bela música que o deserto ainda podia me oferecer: a animada conversa em idioma nativo entre as duas mulheres pastoras sentadas ao meu lado. Tínhamos ainda um longo trajeto pela frente, a percorrer antes do nascer do sol. Eu tinha de voltar a Luanda a tempo de tomar um voo para o Marrocos, onde eu encontraria a Reitora, minha chefe, para mais uma missão. Mas isso, bem, isso já é outra estória.

André de Avila Ramos, em 29 de março de 2013.
Secretário-Adjunto de Relações Internacionais

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